Por um lado, o Brasil é um dos países com os cidadãos mais dispostos a fornecer dados pessoais para se beneficiar de tecnologias inteligentes e conectadas – ou para participar de qualquer brincadeira, como os testes de personalidade que inundam as redes sociais. Por outro lado, o investimento em Internet das Coisas (IoT) evolui a cada ano, seja por meio de start-ups, do governos ou de grandes empresas de tecnologia.
Em dois anos, estima-se que existam 34 bilhões de dispositivos móveis conectados, enquanto a população mundial será de 7,6 bilhões de pessoas. Nessa projeção, o país está entre os líderes de ganhos potenciais, com mercado estimado em US$ 70 bilhões até 2022.
Em livro recém-lançado, Eduardo Magrani, advogado, pesquisador e coordenador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), aborda as dificuldades e os benefícios desse setor no mundo e no Brasil. Ele traça um cenário sobre os riscos e caminhos para soluções acerca de temas como privacidade, segurança e ética em um mundo com mais objetos conectados do que cidadãos.
“A Internet das Coisas” (190 páginas, Editora FGV) pode ser encontrado aqui.
MMT – O exemplo que costuma ilustrar explicações sobre IoT é o da geladeira inteligente, que faz listas com itens que faltam de forma automatizada. É um objeto muito mais caro que, na verdade, cumpre uma tarefa básica. Qual sua visão sobre isso?
Eduardo Magrani – É o que chamo de Internet das Coisas inúteis. Me parece que existe uma fetichização muito grande da tecnologia, com produtos conectados, sem saber se, de fato, aumentam a utilidade, se resolvem algum problema; é a introjeção da tecnologia sem uma visão crítica sobre ela. Às vezes, essas tecnologias trazem mais problemas do que soluções. Coisas conectadas podem gerar problemas graves para a segurança e para a privacidade dos usuários. Muitas vezes, eles não têm essa visão crítica, e os produtos são encarecidos com essas tecnologias. É urgente uma visão crítica dos consumidores sobre isso.
MMT – Tivemos grandes ataques DDoS a partir de câmeras ligadas à internet nos últimos dois anos. Como garantir segurança?
Eduardo Magrani – Tudo que é conectado é vulnerável. As pessoas não atualizam o software, não cuidam da segurança, não trocam senhas. É preciso entender o problema de segurança como algo muito próximo.
MMT – Há algum tipo de padrão de certificação entre diferentes fabricantes de objetos ligados à rede e entre si?
Eduardo Magrani – Ainda não. Se discute [um padrão de certificação] às vezes por conta de produtos, como brinquedos, mas não se discute nada de forma mais técnica, como por exemplo questões sobre vulnerabilidade.
MMT – Isso é necessário?
Eduardo Magrani – Sem dúvida. Participo de um projeto que busca, basicamente, criar um selo de qualidade para produtos de IoT. Debatemos como trazer privacidade, ética e segurança para esses produtos. Aqueles que seguem essa lógica podem colocar um selo chamado IoT Trustmark, que demonstra que o design dos produtos contempla esses três pilares.
MMT – Ainda há baixa penetração de internet nas classes D e E e em zonas remotas do Brasil. A Internet das Coisas pode, de alguma forma, impulsionar investimentos para uma internet para as pessoas?
Eduardo Magrani – O governo está montando o Plano Nacional de Internet das Coisas e que toca várias áreas; visa o aumento de eficiência na segurança pública, na questão de energia, logística, entre outros. A tendência é de que essa conectividade toque diferentes classes sociais. Quando falamos em cidades inteligentes, falamos de IoT. Temos exemplo do Rio de Janeiro como cidade inteligente, mas que na minha opinião foi um fracasso em IoT. Foi um projeto extremamente elitista em que só funcionava a conectividade para áreas nobres e os dados não eram abertos aos cidadãos. Esses problemas têm que ser resolvidos e a IoT tem que chegar para diferentes classes sociais.
MMT – Que cidade você avalia como inteligente no Brasil?
Eduardo Magrani – Por enquanto, nenhuma. Colocaria o padrão de Barcelona e Amsterdam como cidades inteligentes, porque elas têm critérios muito mais altos. Possuem projetos de conectividade e atenção à privacidade dos usuários. Os dados também são abertos e há um olhar atento à discriminação refletida nos algoritmos. São alguns dos parâmetros que não vejo por aqui.
MMT – Como avalia o Plano Nacional de IoT?
Eduardo Magrani – Esse plano foi um grande mapeamento de áreas impactadas pela IoT e tentou priorizar algumas delas. A ideia é conseguirmos ter bons desdobramentos a partir desse mapeamento, mas considero que foi um passo importante porque demonstrou o valor que a IoT tem para o Estado, as empresas e a população.
MMT – Em seu livro, quais são suas maiores conclusões?
Eduardo Magrani – Primeiro, o brasileiro ainda não tem uma visão crítica sobre a tecnologia. Ainda não entendeu as vulnerabilidades em termos de privacidade, segurança e ética. Existe um desconhecimento profundo do consumidor em relação às tecnologias que diariamente interagem com ele, e, ainda, um desconhecimento forte por parte de algumas instituições públicas no Brasil. Governos, municípios e empresas estão desenvolvendo produtos conectados, mas sem uma preocupação com privacidade, segurança e ética, por isso a ideia de selo de confiança de IoT. A ideia desse livro é fazer um balanço sobre pontos positivos e negativos para que a gente consiga extrair esse potencial da Internet das Coisas sem cair em risco demasiado.
MMT – Como não cair nesse risco?
Eduardo Magrani – É uma via de mão tripla. Primeiro lugar, há a necessidade de regulações jurídicas adequadas. Acabamos de passar no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados, isso já responde a bastante coisa, reduzindo o número de abusos. A segunda via é a pró-atividade das próprias empresas em fazerem produtos mais seguros e protetivos do ponto de vista da privacidade, tentando criar isso como um diferencial competitivo. A terceira via é um senso crítico dos consumidores, e, para isso, precisamos de educação digital da população. Esse livro busca trazer mais conscientização sobre essas tecnologias.