Máquina que pensa

Em 1997, o supercomputador Deep Blue, desenvolvido pela IBM, derrotou Garry Kasparov – considerado o maior jogador de xadrez de todos os tempos – em um confronto com regras e tempos oficiais. Na época, a inteligência das máquinas era uma dúvida, e a inesperada derrota gerou uma grande repercussão mundial. O tempo se passou, a tecnologia não estacionou e, em 2016, a história se repetiu, dessa vez em um match do jogo chinês Go – considerado mais difícil que o xadrez – em que o supercomputador AlphaGo, do Google, venceu o campeão mundial da modalidade Lee Se-Dol, natural da Coreia do Sul.

Acontecimentos como esses fazem emergir muitas discussões sobre Inteligência Artificial (IA) e, para o senso comum, pode parecer um conceito provindo das duas últimas décadas. Mas, segundo Renatha Capua, doutora em Computação pela UFF, os primeiros estudos foram realizados ainda nos anos 40, dando início a uma série de pesquisas ligadas à IA.

“Em 1943, o neuroanatomista Warren McCulloch e o cientista cognitivo Walter Pitts propuseram um modelo de neurônio artificial. A partir desse ano, vários outros trabalhos foram desenvolvidos. Um dos mais famosos foi o artigo Computing Machinery and Intelligence, de Alan Turing, publicado em 1950. Esse artigo é discutido até hoje, pois nele o autor apresenta, dentre outras ideias, o chamado Teste de Turing, para verificar se um determinado sistema computacional é realmente inteligente. No entanto, o termo Inteligência Artificial começou a ser utilizado somente a partir de 1956”, conta Renatha, que explica que os anos seguintes foram marcados pelo entusiasmo na área com o desenvolvimento de diversas ideias e pesquisas.

A partir de 1966, entretanto, principalmente devido à limitação tecnológica imposta pelos sistemas computacionais existentes, o vislumbramento de um futuro da IA caiu por terra, já que as ideias propostas ficavam bem longe do que se podia realizar na época. Várias pesquisas foram canceladas e a situação só começou a mudar nos anos 80.
“Devido ao sucesso obtido pelo uso do primeiro sistema especialista que foi aplicado à indústria, quase todas as maiores indústrias dos Estados Unidos ficaram interessadas em montar laboratórios na área de IA, o que alavancou novamente as pesquisas na área. Pesquisas em campos anteriormente abandonados, como as redes neurais, que foram desenvolvidas em 1969, foram retomadas”, comenta.

De acordo com Renatha, existem diversas definições aceitas por estudiosos da área sobre o que seria Inteligência Artificial. Os autores de um dos livros mais utilizados na área, Stuart Russell e Peter Norvig, classificam as definições de IA em quatro categorias diferentes: a dos sistemas que pensam como os seres humanos; a dos sistemas que pensam racionalmente; a dos sistemas que atuam como os seres humanos e a dos sistemas que atuam racionalmente.

“Essa grande quantidade de definições sobre o que seria IA se deve principalmente à grande discussão do significado da palavra ‘inteligência’ ou do que poderia ser considerado um sistema inteligente. Existindo o que se chama de IA Fraca, onde pesquisadores acreditam que as máquinas não conseguem ser realmente inteligentes, que elas apenas simulam o comportamento inteligente, e IA Forte, onde se acredita que as máquinas realmente poderiam ser capazes de pensar, ou seja, desenvolver um comportamento inteligente”, pondera.

Hoje, a IA alcançou um papel científico muito importante, devido principalmente ao desenvolvimento significativo de muitas áreas como o aprendizado de máquina, a mineração de dados, big data – volume de dados – e outras”, lista Renatha.

Dentro da robótica, um grupo de jovens estudantes de Engenharia vem se destacando no cenário nacional e mundial por ter a Inteligência Artificial como aliada em seus estudos. Trata-se da equipe do RoboIME, iniciativa na área de Robótica do Instituto Militar de Engenharia (IME), localizado na Urca, no Rio. Segundo uma das integrantes da equipe, Carla Cosenza, de 21 anos, um de seus principais projetos é desenvolver um time de seis robôs que jogue futebol de forma autônoma em um ambiente dinâmico. Para que consigam fazer isso, usam a Inteligência Artificial. Os robôs participam em diversos campeonatos a nível nacional e mundial na categoria Small Size League.

“Na categoria Small Size League, ou categoria B, da RoboCup, câmeras ficam posicionadas em cima do campo, que capturam as posições e orientações dos robôs e da bola. Um software faz a análise das imagens capturadas pela câmera, identificando cada robô e determinando sua posição. Essas informações são enviadas para os times, que, com suas inteligências artificiais, geram comandos que são enviados aos robôs para serem executados sem a utilização de controle remoto”, resume Carla que, com o time, já foi parar no outro lado do mundo na luta por títulos. “Nossa viagem mais recente foi para Curitiba, em novembro. Fomos participar da Latin American Robotics Competition (Larc), onde conseguimos ficar em primeiro lugar. A outra viagem que fizemos foi para participar da RoboCup, no Japão, no ano passado. Conseguimos o melhor resultado de uma equipe brasileira nos últimos três anos, ficando no top 16”, enfatiza.

Onias Castelo Branco, de 22 anos, está no projeto desde o primeiro ano de faculdade e diz que os membros do laboratório usam em média umas 15 horas por semana nos primeiros meses, perto das competições, mais de 20 horas.

“Esse tempo compreende não só o desenvolvimento do projeto, como também o estudo dos assuntos abordados e a pesquisa para constante melhoria dos robôs e dos algoritmos”, conta Onias.

Apesar de ser um trabalho bem árduo, segundo ele, o projeto permite que os membros do laboratório possam aprender com bem mais incentivo – pois o trabalho deles se materializa em um robô – e profundidade.

Outro assunto ligado à Inteligência Artificial é a Internet das Coisas, ou, em inglês, Internet of Things (IoT), que se propõe a dar total automação às mais variadas classes de objetos presentes cotidianamente, tanto no ambiente doméstico quanto no espaço urbano. Hoje, várias empresas do ramo tecnológico, como a carioca Phygitall, se dedicam ao desenvolvimento de soluções para o mercado de Internet das Coisas.

Desenvolvedor de negócios da Phygitall, Lucio Netto explica que a empresa é voltada principalmente para as áreas de cidades inteligentes e indústrias 4.0 – conceitos usados para classificar cidades e indústrias que têm como base o IoT. Para colocar em prática seus projetos, eles trabalham com sensores que, instalados e programados, funcionam associados a conhecimentos de Inteligência Artificial.

“A Internet das Coisas se dá pela previsão de um número maior de sensores espalhados em uma área específica. Por exemplo: em uma cidade inteligente, o clima é monitorado por sensores espalhados por diversos pontos que identificam determinados padrões que até então eram desconhecidos. Até aí estamos falando de levantamento e análise de dados. Para introduzir a inteligência artificial, vou usar o exemplo dos semáforos. Vamos supor que nós temos uma cidade onde todos os semáforos estão conectados à “nuvem” e as câmeras informam o índice de tráfego urbano. A partir disso, percebemos que, em determinada região, em um horário específico, existe um engarrafamento maior. Em um caso como esse, podemos criar um mecanismo de Inteligência Artificial que, com base nesses padrões, identifique nas ruas paralelas se ainda existe a necessidade de manter o sinal fechado por muito mais tempo que o necessário, fazendo com que, automaticamente, abra com mais rapidez”, esclarece Lucio, que, para trazer à nossa realidade, cita alguns dos projetos da empresa. “A Phygitall tem uma iniciativa de tornar a cidade do Rio de Janeiro a primeira cidade inteligente do Brasil com conectividade total para a Internet das Coisas. Hoje, a Baía de Guanabara já tem uma cobertura voltada para a Internet das Coisas, onde se monitoram embarcações, com uma infraestrutura que foi patrocinada pela Marinha do Brasil. Outro projeto nosso, já em andamento, é instalar uma cobertura na região central do Rio e na Zona Portuária. Com relação a esse projeto dos semáforos, nas conversas que andamos tendo com o Centro de Operações e com a Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro (CET-Rio), constatamos que eles ainda não têm automatizado esse processo – a ação humana ainda é crucial para o funcionamento dos trabalhos. Porém, como estamos caminhando para um mundo de big data, com certeza a Inteligência Artificial terá que entrar em ação”, adianta.

Para Lucio, de um modo geral, a tecnologia traria inúmeros benefícios à sociedade, já que foi provada e aprovada por vários países considerados de primeiro mundo. A cidade de Londres, por exemplo, é equipada com uma capilaridade de sensores espalhados, que coletam informações e entregam isso em uma plataforma on-line. O resultado foi que pessoas que sofrem de doenças respiratórias crônicas puderam se prevenir contra eventuais crises que pudessem ter por conta das condições climáticas da cidade. Essa mesma característica se estende a Dublin, Amsterdam, Berna, entre outras cidades europeias.

Já no caso das indústrias, Lucio explica que a IoT se aplica à necessidade que elas têm de tornar conectados seus processos auxiliares de produção. Todas estão voltadas a produzir um determinado produto com a máxima eficiência possível, porém, a concentração de esforços e uso de tecnologias se dá para otimizar esse processo, ou seja, automatizar a produção. É aí que entra o papel da Internet das Coisas.

“Vamos usar de exemplo um ferramental que transporte o produto final de uma unidade para outra. Se ele não se encontra no local correto no momento de chegada do produto, acaba gerando “gargalos” na indústria e atrasando processos. Em uma Indústria 4.0, que envolve Internet das Coisas, analytics, big data, automação, infraestrutura de redes, computação cognitiva, este processo estaria integrado, otimizando seu funcionamento e evitando situações como essa”, garante.

No ambiente doméstico não é diferente. Lucio explica que, apesar de não serem especialistas em automação residencial, o processo é muito simples.

“Vamo supor que você tenha saído e esquecido o forno do seu fogão ligado. Se sua residência é automatizada e seu fogão possui um sensor, você imediatamente receberia pelo smartphone um alerta sobre a situação e teria como voltar para casa ou até dar um comando remoto de desligamento. Isso é possível para qualquer funcionalidade da sua casa”, conclui.

Com tantos benefícios mencionados, é difícil atentar para os perigos oriundos da Inteligência Artificial. Para Eduardo Magrani, coordenador da área de Direito e Tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), nós estamos mais dependentes da IA do que podemos imaginar.

“Com a internet, a gente usa inteligência artificial o tempo todo. Quando surge qualquer dúvida hoje, corremos para o Google. E o buscador do Google é uma inteligência artificial, ele trabalha com algoritmos. É que a gente tem uma ideia errada do que é Inteligência Artificial e não percebemos a presença dela no dia a dia”, salienta Eduardo.

Para conseguirmos mensurar a magnitude da IA, é só pararmos para pensar na importância da internet e, até mesmo, da democracia digital atualmente. Eduardo destaca que, hoje, realizamos vários atos da vida civil, com relação à cidadania, usando a internet, mas metade da população brasileira não tem acesso. Isso já é, por si só, uma desigualdade social. Agora, imagine com tecnologias muito mais avançadas.

“Como várias tecnologias, a Inteligência Artificial possui tanto aspectos positivos quanto negativos. Ela pode, sim, ser usada para o bem da sociedade; da eficiência em vários serviços; e do consumidor em várias áreas. Só que, também, pode ser usada para um lado negativo, gerando mais desigualdade social e discriminação. Nós ainda estamos trabalhando para desenvolver parâmetros éticos, mas ainda não temos uma visão clara sobre eles. Por isso vemos tanto abuso”, pondera.

Fonte: O Fluminense

Deixe um comentário